Perguntas à Língua Portuguesa | |
Por Medialetra (Professor), em 2013/10/25 | 472 leram | 0 comentários | 99 gostam |
Mia Couto puxa pela sua inesgotável criatividade, nesta reflexão joco-séria. | |
Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta. [...] Precisamos [...] de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua: Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo? No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco? A diferença entre um às no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética? O mato desconhecido é que é o anonimato? O pequeno viaduto é um abreviaduto? Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente? Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu? Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado? Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação? O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim? Onde se esgotou a água se deve dizer: “aquabou”? Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço? Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro? Mulher desdentada pode usar fio dental? A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel? As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: “finanças”? Um tufão pequeno: um tufinho? O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha? Em águas doces alguém se pode salpicar? Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério? Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose? Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo? Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca? Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana. Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente. Mia Couto | |
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