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Conversa sobre um ex-aluno
Por Ana Araujo (Leitora do Jornal), em 2020/07/01488 leram | 0 comentários | 97 gostam
Educadora escreve crônica após leitura do diário de um ex-aluno da instituição onde ela trabalha
Conversa sobre um ex-aluno

Conheci Sandro Aurélio durante a quarentena, precisamente no dia 16 de junho de 2020, quando pude ler o diário que ele escreveu para a edição de maio da piauí*. Tudo o que sei a seu respeito está escrito nesse diário, onde ele registrou o próprio dia a dia durante a pandemia de Covid-19 no intervalo de 01 a 16 de abril de 2020. Pontuando seus medos e dissabores, Sandro Aurélio não deixou de mencionar também as benesses que, vez ou outra, lhe atravessam o caminho.

Formado em jornalismo pela Universidade Federal de Outro Preto, o rapaz, de 29 anos, mora em Nilópolis, na Baixada Fluminense (RJ), onde divide a casa com a mãe, uma funcionária pública da área administrativa da prefeitura do Rio de Janeiro. Há um ano, Sandro Aurélio é funcionário de uma rede de farmácias, atualmente trabalhando numa loja em Copacabana na função de balconista. O emprego foi indicação de uma amiga, farmacêutica na mesma rede: “ela ficou com pena de mim, no ano passado, quando viu uma postagem que fiz sobre os sucos que eu estava vendendo no trem”, assim escreveu o rapaz no trecho do diário referente ao dia 15 de abril.

“Tem Cloroquina?” é o título da matéria onde o diário de Sandro Aurélio é apresentado. A pergunta, recorrente no balcão da farmácia após o uso do medicamento ter sido propalado como eficaz no tratamento da Covid-19 – ainda não há evidências científicas que comprovem essa eficácia –, concorria com outra de mesmo significado: “Tem Reuquinol?”.

O ritmo de trabalho do rapaz intensificou-se durante a pandemia, especialmente com o crescimento das entregas que ele mesmo é encarregado de fazer nas cercanias de Copacabana. Correndo de um lado para o outro, Sandro Aurélio é um pisciano que diz ganhar o dia com um simples gesto de educação dos clientes.

Morar na Baixada Fluminense e trabalhar na Zona Sul do Rio de Janeiro, contando apenas com o transporte público para percorrer o trajeto casa-trabalho-casa, se já não é uma missão fácil em dias comuns, o que dizer em tempos de pandemia? Aos atrasos constantes e à superlotação de praxe soma-se o pavor de se imaginar cercado pelo novo coronavírus. É de deixar qualquer um “bem nervoso”; com o Sandro Aurélio não vem sendo diferente: “Nunca na minha vida cheguei perto de ser hipocondríaco, mas tenho medo de pegar o novo coronavírus. Ainda mais por morar com minha mãe, que tem 63 anos”.

Nos registros do dia 01 de abril, o primeiro no diário, Sandro Aurélio reconhece a responsabilidade da concessionária Supervia: “claro que eles poderiam oferecer viagens mais confortáveis e que ocasionassem menos aglomerações, mas isso teria um custo maior”. Citando Bernardo Negron ou BNegão, faz uma crítica ao descaso da empresa para com a vida das pessoas: “desde que o mundo é mundo, ele nunca foi brinquedo/enquanto uns choram/outros se apressam para vender o lenço/isso nunca foi segredo”.

Ao se referir ao que vê acontecer no bairro onde trabalha, Sandro Aurélio cita ninguém menos que Gabriel García Márquez, e faz uma comparação entre a capital fluminense e a fictícia Macondo do escritor colombiano: “às vezes, penso que, se Gabriel Garcia Márquez passasse uns dias vendo o que eu vejo, ele acharia o Rio de Janeiro mais realisticamente mágico do que Macondo”.

Antes de ser balconista de uma farmácia, o botafoguense e fã da cantora inglesa Joss Stone e do cantor Péricles Faria, Sandro Aurélio trabalhou como vendedor de purificadores de água, recenseador do IBGE, garçom, entregador de panfleto, secretário em curso de ioga, segurança e massagista. Garantir a própria subsistência enquanto cursa a graduação é uma realidade para grande parte dos filhos e filhas da classe trabalhadora brasileira; Sandro Aurélio não escaparia dela: “trabalhei durante todo o curso, por isso levei seis anos para terminar a faculdade”. A labuta começou numa escolinha de futebol de cuja sociedade seu irmão participava, logo após concluir o ensino médio numa escola estadual.

Faço uma pausa neste momento para destacar o seguinte trecho do diário de Sandro Aurélio, apresentado nos registros do dia 06 de abril: “em 2007, eu fui jubilado do Cefet (Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca), onde eu fazia o ensino médio e também um curso técnico de eletromecânica. Eu tirava notas altas em português, história e geografia, mas me dava mal em física e matemática. Por causa dessas matérias, fui reprovado de ano duas vezes seguidas e acabei sendo expulso. A vergonha de ser expulso foi duas vezes maior que o orgulho de ter entrado na escola.”

A fluidez com que eu lia o diário foi interrompida. O jovem balconista não poderia imaginar o quanto me afetaria conhecer essa parte da sua história. Eu já havia lido o que ele contara a respeito da sua luta nos dias 01, 02, 03, 04 e 05 de abril. Não sabia o que me esperava no dia 06.

Sandro Aurélio não sabe, mas sou pedagoga na mesma instituição de onde ele fora jubilado em 2007. Ao tomar conhecimento desse episódio, recordei-me de que, naquele ano, eu estava concluindo o curso de Pedagogia na UERJ, onde aprendi que educação é um direito humano inegociável e que na escola pública é onde "se ganha ou se perde um país”, para usar uma frase do professor português António Nóvoa. Uma vez formada, ingressei na escola pública e dela nunca mais saí.

Histórias de desligamento compulsório da escola pública por motivo de dificuldade de aprendizagem, como a que Sandro Aurélio me contou, não estavam no meu horizonte. Na condição de educadora, sou afetada ao saber que a escola pode levar um aluno a se sentir "incapaz de aprender certas coisas”, como se deu com ele aos seus 16 anos. Alguma coisa está fora da ordem para que um aluno tenha de buscar fora da escola um lugar que lhe faculte “recuperar sua autoestima intelectual”, como fez Sandro Aurélio ao se matricular num curso de inglês, após ser jubilado.

Imagino que para Sandro Aurélio a escrita do diário tenha sido uma oportunidade de desabafo: “na adolescência, ver o mar se tornou uma terapia para mim quando fui jubilado do Cefet”. A considerar pela angústia que senti, em 2020, ao saber do seu jubilamento, ocorrido em 2007, fico a pensar na sensação de luto que deve tê-lo abatido quando soube que seria impedido de continuar na escola, aos 16 anos de idade, porque Física e Matemática "não entravam na sua cabeça".

Em 2020, treze anos após a saída compulsória de Sandro Aurélio do Cefet/RJ, a instituição ainda impede a renovação de matrícula – para usar a expressão constante no art.18 do cap.VIII do Regimento Interno** – de alunos no caso de duas reprovações no mesmo ano escolar.

Hoje, se porventura eu pudesse encontrar Sandro Aurélio, me sentiria na obrigação de dizer "sinto muito", em nome dos meus colegas educadores que comigo dividem o sonho (e a luta) de uma escola pública, gratuita, laica e de qualidade para todos, na justa medida da necessidade e da potencialidade de cada um.Também não poderia deixar de dizer que sua história é inspiradora e sua escrita, promissora.

O choro compartilhado entre Sandro Aurélio e seu pai, quando o rapaz contou ao genitor que estava escrevendo um diário para a piauí - sua primeira oportunidade profissional como jornalista - deve ter representado um misto de alegria, orgulho e esperança para ambos. O pai, que mora longe e recebeu a ligação do filho por ocasião do aniversário, ganhou o “melhor presente possível” com a notícia. Eu diria ao promissor jornalista que preparasse seu pai para muitos prantos de alegria porquanto o diário é apenas o começo. Da mesma forma, o sonho de conseguir alugar uma casa para morar com a Regina – “o melhor presente” da faculdade –, que ficou em Ouro Preto fazendo mestrado em História, não tardará a se concretizar.
 
Por fim, eu ainda diria a Sandro Aurélio que seus leitores se multiplicarão para muito além do número de colegas que ele hoje tem na farmácia, onde ninguém sabe, por enquanto, da sua formação em jornalismo. Os ventos sopram bons augúrios!

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*AURÉLIO, Sandro. Tem cloroquina? piauí. nº 164. Maio de 2020. p. 70-73. Cumpre esclarecer o leitor que não encontrei, na referida edição, informação sobre o caminho percorrido por Sandro Aurélio para publicar um texto na revista em questão, com a qual, pelo que me pareceu após a leitura do diário, o rapaz não tem qualquer tipo de vínculo.
    
**CEFET/RJ. Regimento interno dos cursos de ensino médio-técnico. (Acessado em 01 de julho de 2020).
   
   



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